José Adelino Maltez, Tópicos Jurídicos e Políticos, estruturados em Dili, na ilha do nascer do sol, finais de 2008, revistos no exílio procurado da Ribeira do Tejo, começos de 2009

 

Metapolítica

 

 

Segundo Hannah Fenichel Pitkin, há em todos os autores uma metapolítica, os pontos de vista mais largos que ultrapassam a ideologia de cada um e se prendem com as concepções do mundo e da vida, com as ideias que cada um tem sobre a sociedade e a natureza do homem. Para o pensamento grego clássico, a política era inseparável da metapolítica: só passou a haver política quando se concebeu uma metapolítica, quando tratou de fazer depender-se a polis de um fim, de uma razão, de uma ideia suprapositiva. Quando a polis deixou de ser apenas ordem e tratou de subir à categoria de governação, onde o reger tende a ser caminhar para um certo fim, tende a ser pilotar, conduzir o navio a um determinado ponto futuro. Mas caminharmos para a metapolítica, não pode fazer esquecer-nos a base do processo, do biológico ao social. Começa-se na metapolítica, mas logo deve refluir-se para o intrapolítico; porque, ao mergulhar no concreto, se regressa ao normativo e ao dever ser. É por causa desta pesquisa sobre a metapolítica que a política acaba por ser gerada. Tal como os factos têm de integrar-se nas ideias, para que as ideias fecundem os factos...

 

Contrariando os modelos desenvolvimentistas, mantiveram-se, contudo, vários discursos metapolíticos sobre as relações internacionais, com destaque para o que é praticado pela filosofia da história, incluindo não só os cultores do próprio método profético, mas também as várias análises produzidas pelos messianismos e pelas religiões.

 

Manifesta-se assim a tal ideia de crescente racionalidade de Max Weber, Talcott Parsons e Daniel Bell, levando à exigência de um transtempo e da consequente abertura à imaginação, porque, conforme Hugh Trevor-Roper, a história não é meramente o que aconteceu: é o que aconteceu dentro do contexto do que poderia ter acontecido. Só podemos olhar confiantemente no futuro, se olharmos o passado com suficiente imaginação (Gilberto Freyre).

 

Com efeito, as filosofias da história, contrariamente ao vazio do pensamento logicista, como referia Croce , assumem sempre um carácter poético, onde os factos já não são factos mas palavras, já não são realidade, mas imagem. Logo, conceber a história como evolução e progresso, implica aceitá-la em todos os seus aspectos, e, portanto, negar a validade dos julgamentos sobre ela (Carr). No mesmo sentido Nikolai Berdiaev (1874-1948) salienta que o tema da filosofia da história é constituído pelo destino do homem nesta vida terrestre, destino que se realiza na história dos povos, isto é, cumpre-se não apenas no macrocosmos objectivo, mas também no microcosmos subjectivo.

 

Também Martin Buber (1878-1965) assinala que o próprio narrar é acontecimento; ele tem a unção de uma acção sagrada... A narração é mais do que um reflexo; a essência sagrada que nela é testemunhada continua a viver nela (Metz).

 

Na verdade, como salienta Fernando Pessoa, o misticismo significa, essencialmente confiança na intuição, nessa operação mental pela qual se atingem os resultados da inteligência sem usar a inteligência. Porque o mito é um nada que é tudo. Assim, o misticismo, o ter um sentimento nítido de uma coisa que não se sabe o que é, dado que o místico onde não pode calcular, adivinha; onde não pode pôr à prova, profetiza, pelo que em toda a matéria onde não pode haver ciência tem necessariamente que haver misticismo.

 

Neste sentido, na senda daquilo que Miguel de Unamuno cunhou como intra-história, até talvez haja um futuro íntimo (Freyre).

 

O método profético da análise histórica é o que cultiva a Geschichte em vez da Historie, o que não reduz a história à mera investigação científica e à simples interrogação objectiva, dado preferir enfrentar a globalidade, sem excluir o mito e a consequente imaginação, considerando que o verdadeiro historiador deve pesquisar o sentido essencial de um determinado grupo de homens, chame-se-lhe missão ou objectivo permanente.

 

Neste sentido, a poesia, como Geschichte, pode ser mais verdadeira do que a história, como Historie. Isto é, a palavra poética e o discurso retórico, ao assumirem que no princípio era o verbo e que o verbo se fez carne e sangue, podem iluminar alguns daqueles sentidos que o discurso meramente lógico, apenas racionalmente assimilável, não consegue atingir, por tudo reduzir a enunciados cognoscitivos, a conjuntos de parcelas, encadeáveis e sistematizáveis, more geometrico. Onde o todo é igual à mera soma das parcelas, pelo que o mesmo poderia decompor-se pela análise e reconstruir-se pela síntese, e onde até se considera possível o estabelecimento das leis sobre o funcionamento desse todo, às quais se acederia através de uma série de experimentações, laboratorialmente controláveis e academicamente explicáveis.

 

Porque o homem tem de reconhecer, nas respectivas comunidades históricas, as mãos invisíveis (Adam Smith) ou os génios invisíveis da cidade (Giuglielmo Ferrero) que, quase secretamente, ordenam o respectivo simbolismo e podem subverter aquela ordem discursiva que pretende apenas actuar no plano do racional-finalístico .

 

Porque o homem não é apenas um animal intelectivo ou voluntarístico, é também um animal simbólico, onde a imaginação constitui um dos elementos estruturantes da sociabilidade.

 

No fundo, o culto da filosofia da história tenta cumprir o plano exposto pelo Padre António Vieira, para quem haveria que misturar o lume da profecia com o lume da razão, que seriam as duas fontes da verdade humana e divina. Isto é, procura desmistificar a história, mas não a desmitificando (Edgar Morin).

 

Entre os cultores da filosofia da história que têm tratado da matéria das relações internacionais, importa salientar o historiador britânico Arnold Joseph (1889-1975), educado em Oxford e professor em Londres, director do Royal Institut of International Affairs de 1925 a 1955.

 

Considerando que os Estados não são intelligibles fields para o estudo da história, prefere a civilization, equivalente ao conceito de Kultur de Oswald Spengler (1880-1936), mas considerando que as várias civilizações constituem um só mundo (One World), uma super-civilização, sem bárbaros nas fronteiras.

 

Oswald Spengler, tendo começado por estudar e ensinar ciências naturais no ensino secundário, passou a dedicar-se ao jornalismo político, autor de Untergang des Abendlandes, de 1916. A obra, que tem como subtítulo Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte (Esboço de uma Morfologia da História), defende uma concepção dita morfológica da história, que há um aparecimento e uma dissolução contínuas de diferentes culturas, cada qual com cerca de mil anos. Acaba por aderir ao nazismo, a partir de 1933.

 

Estabelece-se assim uma analogia com a vida das plantas, dizendo que cada cultura também passa por uma série regular de estádios. Nega-se a visão linear do progresso, como aparece na sucessão das idades antiga, medieval e moderna. Se cada cultura tem uma alma, como dizia Herder, todas elas são mortais. Depois de um período de crescimento, entram naquilo que designa por fase da civilização, que antecede a extinção final. Contra a causalidade, invoca o destino. Contra a civilização, defende a cultura. Contra a natureza, invoca a história. Contra a decadência, exalta a vida. Considera até que se vive uma nova fase da história, depois do período clássico, greco-romano, ou apolíneo, o chamado período fáustico ou ocidental. E isto porque um poder só seria passível de ser derrubado por outro poder e não por um princípio, observando que, depois da vitória do dinheiro, se sentia chegar a seu sucessor, o cesarismo, de forma lenta, mas irresistível.

 

Na mesma senda, refira-se o lituano Hermann Von Keyserling (1880-1946) que, influenciado por Bergson, funda em Darmstadt, em 1929, uma Escola de Sabedoria e uma Sociedade de Filosofia Livre, onde pretendia lutar pelo renascimento da Europa, de acordo com o conceito oriental de sabedoria. Profere três célebres conferências em Lisboa, em Abril de 1930. Considera o homem como a síntese de elementos telúricos e espirituais, salientando que, se as ideias permitem saber, só a alma pode compreender, isto é, penetrar no sentido daquilo que se sabe, um sentido que é o lugar onde se mistura o espiritual e o vivo.

 

As boas intenções de certo racionalismo, calculista e utilitarista, e de quase todo o positivismo cientificista, fizeram com que muitos sectores ocidentais padecessem de um paroquialismo gnóstico, onde alguns continuaram, e continuam, a acreditar na superação do teológico e do metafísico. Mesmo quando, na intimidade, se mantém uma íntima crença no transcendente e a humildade perante o mistério, os nomes de Deus e dos deuses foram banidos do espaço público e do próprio esforço da racionalização e da ciência, criando-se dualismos pouco sadios, que continuam a decepar a inteireza de quem, mesmo que esteja preso no lodo das circunstâncias, não pode deixar de olhar para as estrelas.

 

Talvez por isso é que aí estão, de novo, os fundamentalismos e os libertacionismos de matriz religiosa. O colosso soviético foi abalado a partir dessa reacção contra a escravatura na consciência de cada um, que os cristianismos ortodoxo, católico e protestante- reavivaram, e o ano 1989 demonstrou que as brasas se reacenderam quando se soprou a cinza do doutrinarismo oficioso.

 

Se o mundo islâmico continua estremunhado pela revolta fundamentalista aí estão os taliban e muitos outros advogados de guerras santaseis que, noutras zonas do mundo, como nas Américas e em África, algumas das religiões, que pareciam decadentes no mundo ocidental, assumem a força da esperança.

 

O gnosticismo constituiu uma heresia dos primeiros cristãos, que visava criar uma espécie de religião universal, unindo o cristianismo às mais antigas crenças e ao próprio judaísmo. Partindo do dualismo persa, que fazia o confronto entre a matéria, intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom, considerava que o mundo havia sido criado por Demiurgo, um dos iões que desejava ser Deus. Os tais iões eram entidades que estavam unidas ao ser supremo, uma série de seres intermediários entre o espírito e a matéria, que eram menos perfeitos à medida que se afastavam de Deus. Um deles, Demiurgo, depois de expulso do reino da luz, teria sido lançado num abismo, onde acabou por criar o nosso universo, dando forma à matéria e criando o homem, uma matéria onde existiria um grão de luz, a alma. E foi para redimir o homem que Deus teria mandado à terra um ião fiel ao ser supremo, um tal Jesus Cristo. O gnosticismo que teria sido fundado pelo judeu convertido ao cristianismo chamado Simão Mago, vai ressurgir no século IV, sob a forma de arianismo que, acreditando na unidade absoluta de Deus, negava a Trindade e a divindade de Cristo.

 

A herança gnóstica manifesta-se em todos aqueles que consideram a história do mundo como uma luta entre dois princípios (o bem e o mal), através de três idades (o passado, o presente e o futuro), nessa visão trinitária da história, expressa por Giocchino da Fiore (1130-1202): (a idade da Revelação do Pai, ou Idade da Lei, quando os judeus se subordinam à lei de Moisés; a Idade da Revelação do Filho, o período da encarnação, quando a liberdade ainda é incompleta; e a Idade do Espírito Santo, a idade da plena e total liberdade do espírito). Giambattista Vico(1668-1774) (Deuses, Heróis e Homens), Comte XE "Comte, Auguste"  (Idades Teológica, Metafísica e Científica).

 

Foi neste chão que Marx colheu a tríade Capitalismo, Socialismo, Comunismo. É ainda segundo o mesmo ritmo que se visionam os três tempos das concepções revolucionárias: o tempo da opressão, o tempo da resistência e o tempo da libertação, em que o Anjo domina o Dragão e a vitória é levada até à apoteose.

 

O gnosticismo exige também um líder, que tanto pode ser um dux individual como a figura colectiva de um homem novo, desde o príncipe de Maquiavel ao militante comunista de Lenine, para não falarmos nesses instituidores do Terror, em nome da razão, virtude e regeneração, como foram os jacobinos. Além do líder, exige-se uma irmandade de pessoas. O que deu origem à mística das associações secretas, segundo a qual aqueles que não são iniciados são profanos e que continua a estar na base de todos os vanguardismos. Acresce que o gnosticismo tende a dividir, geograficamente, zonas dominadas pelo bem e pelo mal. Não aceitamos esta visão linear da história que acredita no progresso crescente, quando a história pode também ser retrocesso. Tanto o comunismo soviético como os ocidentalíssimos positivismos, cientificismos e progressismos constituem fogueiras não apagadas de um medievalíssimo gnosticismo.

 

Metapolítica e Nação Há uma noção metapolítica de nação, desde os messiânicos aos que, em nome da Providência, fazem depender a nação da mão de Deus.

 

Seguindo uma sugestão de Hannah Fenichel Pitkin, consideramos que, em todos os que pensam a política, há sempre uma metapolítica, isto é, aquelas perspectivas que ultrapassam a ideologia de cada um e se prendem com as concepções do mundo e da vida, com as ideias individualmente assumidas sobre a sociedade e a natureza do homem.

 

Para o pensamento grego clássico, a política era, aliás, inseparável da metapolítica. Porque só passou a haver política quando tratou de fazer depender-se a polis de um fim, de uma razão, de uma ideia suprapositiva. Quando a polis deixou de ser apenas mera ordem e tratou de subir à categoria de governação, onde o reger tende a ser caminhar para um certo fim, como o pilotar, o navio para um determinado ponto futuro.

 

Caminharmos para a metapolítica, não pode, contudo, fazer esquecer-nos a base do processo, do biológico ao social. Quando por aí começamos, logo devemos refluir para o intrapolítico, mas, ao mergulharmos no concreto, regressamos ao normativo e ao dever ser. Assim, é por causa desta pesquisa sobre a metapolítica que a política acaba por ser gerada. Tal como os factos têm de integrar-se nas ideias, para que as ideias fecundem os factos...

 

De qualquer maneira, conforme o polaco Thadeus Mazowiecki, a verdadeira política talvez seja uma política anti-política, dado ser marcada por um combate pela consciência fundamental, uma fidelidade aos princípios morais fundamentais.

 

© José Adelino Maltez

 

Última revisão:12-04-2009

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